sábado, 29 de maio de 2010

Isaac Albeniz

Acordes espanhóis que há muito tempo não saem de minha mente, trocando em miúdos, é possível que aconteça quase uma "transposição" enquanto ouço: Astúrias de Isaac Albeniz interpretada por John Williams

Um pouco de ficção para encantar a realidade...



Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.

Tudo o que amei, amei sozinho.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério.

Veio dos rios, veio da fonte,
da rubra escarpa da montanha,
do sol, que todo me envolvia
em outonais clarões dourados;
e dos relâmpagos vermelhos
que o céu inteiro incendiavam;
e do trovão, da tempestade,
daquela nuvem que se alteava,
só, no amplo azul do céu puríssimo,
como um demônio, ante meus olhos.

Edgar Allan Poe

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Educação e cultura

O educador Tião Rocha é antropólogo, educador popular e folclorista. É fundador e presidente do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento - CPCD, organização não governamental, sem fins lucrativos, que atua no campo da educação popular e do desenvolvimento comunitário, tendo a cultura como instrumento e matéria-prima de
ação pedagógica e institucional.

Divulgo aqui um artigo para inspirações futuras, que pode ser encontrado em http://www.scribd.com/word/full/2974456?access_key=key-xvdrftlqf6f28gqr0y5.


A Função Do Educador

Tião Rocha

"Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Me ajuda a olhar!"
A este texto primoroso, o escritor uruguaio Eduardo Galeano denomina de "A função da arte", publicado em seu "O Livro dos Abraços" (1989).
Poderia ser também, ao nosso ver, chamado de "A função do pai" ou "A função do educador".
O pai ou o educador não é aquele que ensina ao filho ou ao aluno como é o mar, mas o que, junto com o filho ou o aluno, leva-o a descobrir e a se apropriar do(s) mar(es) mundo que ele vê com os olhos, sente com o coração, deseja com a alma, constrói com a cabeça e as mãos, e sonha com os seus sonhos.
Por isso, quando um filho ou um aluno diz "me ajuda a olhar!", ele está, não só
reconhecendo a sua necessidade de ser ajudado a olhar e ver mais longe, mas, também homenageando seu pai ou seu educador, reconhecendo nele o seu saber, sua coerência, sua amizade, sua parceria.
Se um pai ou um educador escuta um "me ajuda a olhar!", seja através da fala, dos olhos, das mãos, do corpo, do sonho, do choro, da dor, da alegria, ele deveria sempre responder com um "me ensina o que você viu!"
Só assim haverá uma verdadeira educação, isto é, uma relação plural e entre iguais, de cumplicidade, conluio, apaixonadamente verdadeira.
Esta é, segundo nosso entendimento e nossa prática, a única possibilidade de se construir uma relação efetiva entre pai-e-filho, entre educador-e-aluno.
Educação é o outro nome que se dá a esta relação que só existe e teima em se realizar no plural. É impossível existir educação no singular. Poderá haver outra coisa, instrução ou ensino, mas nunca educação.
E, se é alguma coisa plural, a função da família é ser, acima de tudo, assim como a escola também deve (e deveria) ser sempre, o "locus" privilegiado da prática educativa, onde pai-e-filho, assim com professor-e-aluno, sejam, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos desta construção. Uma relação entre pessoas diferentes - adultos e crianças - mas uma "relação entre iguais", respeitosa, solidária, afetuosa e enriquecedora para ambos.
_Isto é possível?
_Claro que é!
Mas para que esta educação se realize em toda sua plenitude, é necessário que o pai ou o professor tome a iniciativa de levar o filho ou o aluno a "descobrir o mar", a superar, juntos, as "dunas altas", e as "alturas de areia".
Ao fazer isto, o pai ou o educador estará re-descobrindo o mar através do olhar do filho ou do aluno. Este descobrir/redescobrir o mar juntos, significa reinventá-lo, reciclá-lo, reapropriá-lo, renascê-lo. E, acreditamos que todo dia é dia de navegar nos mares da vida e de passar este mundo a limpo para que todos nós - pais e filhos, professores e alunos - sejamos, diuturnamente, educadores e educandos do mistério e da mágica que é o viver.
Por outro lado, o "me ajuda a olhar!" tem significado, a cada dia que passa, o nosso compromisso de não deixar que nossa geração de herdeiros - filhos e alunos - vagueie perdida, abandonada e vitimada por um mundo cada vez menos seu.
Este pedido se pode ser um abraço também tem sido um sinal de alerta, um aviso, um tapa na cara.
Voltemos a Eduardo Galeano, agora em sua "Celebração das contradições/2": "...Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no mundo" (in "O Livro dos Abraços").
Por isso temos que ser sempre educadores, sejamos pais, sejamos filhos, sejamos
professores, sejamos alunos, porque "cada promessa é uma ameaça; cada perda, um encontro. Dos medos nascem as coragens; e das dúvidas, as certezas. Os sonhos anunciam outra realidade possível e os delírios, outra razão."
_"Me ajuda a olhar!?"
_"Me ensina o que você viu!?"


Acesso em 25/05/2010.


Jorge Luis Borges

Jorge Francisco Isidoro Luis Borges Acevedo nasceu em 1899 foi um escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta argentino. Sua obra abrange o "caos que governa o mundo e o caráter de irrealidade em toda a literatura".
Um conto do Borges para elucidação e distração:


Uma oração

Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; posso dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.
Quero morrer completamente; quero morrer com este companheiro, meu corpo.

Poema extraído do livro "Elogio da Sombra" (tradução: Carlos Nejar e Alfredo Jacques)